CONGRESSO EM FOCO ©
Ana Trigo *
Uma mulher que busca o aborto legal pode estar inserida em três contextos: a criança – muitas vezes desejada – não tem chances de sobrevida; a gravidez lhe traz o risco de morte ou é resultante da violência máxima do estupro. O fracasso, a frustração, o desespero, o horror são companheiros comuns nessa jornada. Além disso, mulheres e meninas ainda costumam enfrentar o julgamento velado ou explícito: “Como assim não vai permitir que o filho nasça?”, “Uma mãe de verdade se preocupa apenas com seus filhos”, “O que estava fazendo àquela hora naquele lugar?”, “Que roupa estava usando?”, “Se ficasse com as pernas fechadas nada disso aconteceria”.
Nem mesmo a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de proibir que mulheres vítimas de violência sexual sejam desqualificadas em julgamentos ajuda. Elas são egoístas, assassinas. E precisam pagar por isso. Que o digam as mulheres que foram estupradas e não conseguiram interromper a gravidez depois da publicação da portaria do Conselho Federal de Medicina (CFM) restringindo o procedimento em gestações com mais de 22 semanas. O ministro do STF Alexandre de Moraes suspendeu a norma. Mas, mesmo assim, uma dessas mulheres, que teve de sair da cidade onde mora no interior paulista para buscar ajuda, foi obrigada a ouvir os batimentos cardíacos do feto após três hospitais diferentes da cidade de São Paulo negarem à realização do aborto legal.
Quantas vezes temos lido nos jornais histórias semelhantes de mulheres e meninas que enfrentam sucessivas negativas pelo sistema de saúde ou pelo Judiciário? Quantas vezes elas são violentadas novamente por quem deveria prestar um atendimento minimamente humanizado? É uma tortura sem fim praticada por “pessoas de bem” por “defenderem a vida a partir da concepção”.
O CFM se deixou influenciar fortemente por ideias religiosas e conservadoras e continua sua luta por criminalizar quem busca pelo direito. Seus dirigentes se esquecem de um dos trechos do juramento de Hipócrates, declamado na ocasião da formatura de profissionais de medicina: “não permitirei que considerações sobre idade, doença ou deficiência, crença religiosa, origem ética, sexo, nacionalidade, filiação política, raça, orientação sexual, estatuto social ou qualquer outro fator se interponham entre meu dever e o meu doente”.
Tentam ainda derrubar a decisão do ministro Alexandre de Moraes e punir também os médicos que realizam os procedimentos legais, algo que o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp) já admitiu fazer. E para a surpresa de ninguém, a bancada evangélica pega carona nos Conselhos e se articula para aprovar um projeto de lei que equipara o aborto realizado após a 22ª semana ao crime de homicídio.
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Hoje, o aborto realizado fora das três possibilidades legais – risco de morte para a gestante, anencefalia do feto ou gravidez resultante de estupro – é considerado crime e tem pena prevista de um a três anos de reclusão para a mulher e quem tenha realizado o procedimento. Pelo projeto de autoria do deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), que já foi o presidente da Frente Parlamentar Evangélica, ao ser considerado assassinato, a pena seria de seis a 20 anos de reclusão.
Sóstenes é teólogo e evangélico. Apresenta-se nas redes como “defensor da vida e da família”. Como todo “pró-vida”, a preocupação nunca é com as vítimas de estupro que, na maioria das vezes, só percebem a gravidez de forma tardia. A mulher que se vire sozinha – julgada e abandonada pela sociedade, Judiciário ou igreja – para manter a tão defendida família. A proteção da vida acaba com o nascimento. Depois disso, a criança que lute. Afinal, a meritocracia está aí para isso.
*Os textos publicados pelo Observatório Evangélico trazem a opinião e análise dos autores e não refletem, necessariamente, a visão dos demais curadores ou da equipe do site.
Ana Trigo, jornalista, é mestra e doutora em Ciência da Religião pela PUC-SP. Pesquisadora acadêmica sobre a cracolândia desde 2013, é autora da dissertação “Quando Deus entra, a droga sai”: ação da Missão Belém e Cristolândia na recuperação da dependência química na cracolândia de São Paulo; e da tese “Mulher é muito difícil” – o (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo. Faz parte dos grupos de pesquisa do LAR (Laboratório de Antropologia da Religião – Unicamp) e do GEPP (Grupo de Estudos Protestantismo e Pentecostalismo – PUC-SP). Também integra o coletivo Mulheres EIG – Evangélicas pela Igualdade de Gênero de São Paulo.
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