CONGRESSO EM FOCO ©
Eventos naturais extremos, como as enchentes que causaram ao menos 100 mortes, deixaram milhares de desabrigados e afetaram a vida de mais de 1 milhão de gaúchos, foram intensificados com a ação humana, resultado das mudanças climáticas produzidas pelo aquecimento global e da negligência de autoridades em torno do assunto. Esse é o entendimento uníssono de especialistas e parlamentares ambientalistas ouvidos pelo Congresso em Foco.
Para eles, a tragédia em curso no Rio Grande do Sul carrega as digitais da classe política brasileira como um todo e cabe ao Congresso Nacional a responsabilidade de evitar que esse cenário de destruição se repita ou mesmo se agrave. Seja com a aprovação de uma pauta socioambiental positiva, seja impedindo o avanço de projetos que podem agravar a crise climática e produzir eventos ainda mais trágicos.
“O Congresso deve criar legislações condizentes com a gravidade das evidências e rejeitar matérias legislativas que neguem ou agravem o quadro”, diz trecho de documento produzido pela Frente Parlamentar Ambientalista no Congresso e entidades da área. O relatório, que será encaminhado ao presidente Lula e outras autoridades, aponta 28 propostas que devem ser combatidas e cinco que, na avaliação da bancada, deveriam avançar. Elas foram batizadas de “pacote da destruição”.
Ruralistas
O desequilíbrio no número de projetos considerados favoráveis ou contrários à pauta ambiental reflete a correlação de forças atual do Congresso, onde cerca de 370 deputados e senadores – mais de 60% do Congresso – fazem parte da Frente Parlamentar da Agropecuária, a chamada bancada ruralista. O diálogo entre os dois polos é mínimo.
“A bancada ambientalista explora um desastre humano absurdo no Rio Grande do Sul para alimentar discurso vazio e de retórica política polarizada para ampliação de espaço e debate na imprensa”, retruca em nota a FPA. “Não há espaço para polarizações e ideologias neste momento. A FPA reforça que não incentiva crimes ambientais e trabalha pelo desenvolvimento sustentável do setor, amparado no Código Florestal Brasileiro”, reforça a frente parlamentar.
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A bancada defende iniciativas como a destinação de emendas parlamentares e a facilitação na liberação de recursos para o estado, por meio do reconhecimento do estado de calamidade pública, medidas aprovadas esta semana pelo Congresso em resposta à tragédia.
Articulação x desarticulação
Diretor de Comunicação e Política Internacional do Observatório do Clima, Claudio Angelo conta que aumentou de cinco para 25 o número de projetos de lei que compõem o chamado “pacote da destruição”. “Desde o início da atual legislatura, há cinco vezes mais projetos que podem fazer estrago nos direitos socioambientais e no clima com risco de passar no Congresso”, observa o representante da rede que reúne 107 integrantes, entre ONGs ambientalistas, institutos de pesquisa e movimentos sociais.
Para Claudio Angelo, a mudança se dá em razão do crescimento e da influência cada vez maior da bancada ruralista e da incapacidade do governo Lula se articular politicamente para impedir o avanço de pautas nocivas ao meio ambiente. “Não sabemos se é falta de articulação, incapacidade do governo de lidar com as dificuldades que de fato ele tem no Parlamento ou se não há certa cumplicidade da parte dele em rifar a agenda ambiental em troca de coisas que considera mais importante, como a reforma tributária. É uma tempestade perfeita”, avalia o diretor do Observatório do Clima.
Alerta vermelho
O presidente da Frente Parlamentar Ambientalista, deputado Nilto Tatto (PT-SP), nega que haja descaso com a pauta por parte do governo federal. “Nem tudo aquilo que o governo faz tem respaldo aqui, onde a maioria dos deputados quer impedi-lo de adotar medidas necessárias para enfrentar a crise climática”, afirma o deputado petista.
Para ele, as chuvas intensas no Rio Grande do Sul, os episódios de seca no Norte e no Nordeste e as inundações em São Paulo no ano passado se tornaram eventos cada vez mais comuns não por falta de aviso. “Há 20, 30 anos os ambientalistas alertavam que o processo de ocupação desordenada, desmatamento, emissão de gases de efeito estufa iriam provocar chuvas torrenciais em alguns lugares e seca em outros. É o que vemos agora”, diz Tatto.
O deputado defende que os cientistas e ambientalistas sejam ouvidos agora para que tragédias ainda maiores não ocorram em um futuro próximo. “Aquilo que acontece hoje não temos mais como impedir, porque não fizemos a lição de casa lá atrás. Se não fizermos agora, se não discutirmos uma legislação em termos de políticas públicas, que influencie as cadeias produtivas, vamos ter eventos ainda mais extremos. Precisamos também criar políticas públicas para adaptar as pessoas a essa nova realidade e diminuir o sofrimento do povo”, afirma o presidente da Frente Parlamentar Ambientalista.
Na contramão
Oconsultor jurídico do Instituto Socioambiental (ISA), Maurício Guetta, considera que o Congresso precisa se atentar ao papel central que o Brasil exerce no enfrentamento da emergência climática. Para ele, os parlamentares têm atuado na contramão.
“Há anos o Congresso Nacional tem investido na aprovação de propostas contra o meio ambiente e a estabilidade do clima, como a Lei das Apps (áreas de proteção permanente) Urbanas, que permite a destruição de margens de rios em áreas urbanas e agrava o risco à vida da população em eventos climáticos extremos, como o do Rio Grande do Sul”, exemplifica.
De acordo com ele, é preciso frear imediatamente a tramitação das 28 propostas que podem causar dano ambiental irreversível caso sejam aprovadas. “Em seu lugar, o Legislativo deveria votar projetos de lei para o enfrentamento de eventos climáticos extremos, como o PL que exige medidas de prevenção e adaptação às mudanças do clima, que deixaram de ser implementadas pelo governo estadual e por prefeituras do Rio Grande do Sul”, cita Guetta.
Responsabilidade compartilhada
O diretor adjunto do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS), Marcos Woortmann, aponta uma responsabilidade compartilhada na tragédia gaúcha entre governo local, classe política brasileira e modelo de uso da terra no processo de expansão das fronteiras agrícolas no século 20. “Em nosso país, o chamado ‘desenvolvimento’ foi sempre baseado na retirada da cobertura natural da terra e sua substituição por monoculturas e pastagens. Neste momento a gente colhe os frutos amargos dessa decisão. Houve muitos alertas ao longo das décadas de que isso poderia acontecer. Não foi por falta de aviso”, lamenta Woortmann.
Ele lembra que, em 2012, o Congresso flexibilizou o Código Florestal, reduzindo a proteção das matas ciliares, áreas de infiltração extremamente importantes em áreas como as cabeceiras no Vale dos Sinos, no rio Taquari e em toda a bacia do rio Guaíba, no Rio Grande do Sul. Natural de Novo Hamburgo, uma das cidades inundadas, Woortmann observa que o preço sempre é pago pelas populações mais vulneráveis e cobra uma mudança de postura por parte das autoridades brasileiras.
“O mais impressionante é a constatação de que não há mea culpa por decisões erradas do passado. Neste momento, com a água cobrindo as residências das pessoas, com bilhões de prejuízos, milhares de desabrigados e uma centena de mortos, ainda existem pessoas que negam que as mudanças climáticas sejam uma realidade. Muitas delas migram para o discurso de que as mudanças climáticas são assim mesmo, da natureza, não há nada que fazer”, observa. “É uma linha de raciocínio que denota uma tremenda falta de caráter, porque na base do interesse delas existe uma agenda, não fazer nada e manter as coisas como estão”, acrescenta.
Ceticismo
Será a tragédia no Rio Grande do Sul capaz de provocar um ponto de inflexão na agenda do Congresso? Os ambientalistas ouvidos pelo Congresso em Foco são céticos.
“Não ouso dizer que os políticos vão acordar e agora vai ter um monte de candidato a prefeito se comprometendo com essa agenda. Acho que isso não vai acontecer. O candidato a vice do Ricardo Nunes é um dos piores negacionistas do clima do brasil. Ele vai trocar o Aldo Rebelo? Se isso acontecer, posso acreditar. Mas não creio. Assim que a água baixar, e Porto Alegre e o Rio Grande do Sul voltarem às atividades quase normais, a coisa vai ser esquecida”, lamenta Claudio Angelo. “Cabe à sociedade civil continuar pressionando para que políticos comecem nesta eleição municipal a mudar essa escrita no Brasil”, defende o diretor do Observatório do Clima.
À posição de Claudio se soma a de Nilto Tatto. “Tenho muitas dúvidas se a bancada ruralista, que é a que mais patrocina projetos antiambientais dentro da Casa, vai se sensibilizar com o que está acontecendo no Rio Grande do Sul. Ficou patente para a sociedade – e as pesquisas já demonstravam – que esses eventos são consequência das mudanças climáticas provocadas pelo aquecimento global. Nosso esforço em fazer essa divulgação é mobilizar a sociedade para que ela fique mais atenta aos projetos que estão tramitando aqui dentro e pressione os parlamentares”, diz o presidente da Frente Parlamentar Ambientalista.
Realidade gritante
Para Marcos Woortmann, do IDS, a tragédia no Rio Grande do Sul deveria servir para envolver a sociedade como um todo na discussão das mudanças climáticas, em vez de reduzir o problema a um assunto de ambientalista.
“Como mudar a relação de forças dentro desse espectro político tão polarizado no Congresso, onde existe um núcleo majoritário que é completamente refratário à realidade climática, é a pergunta de um milhão de dólares. Ninguém tem resposta. A realidade não só está batendo na porta, está arrombando a porta, sentando à mesa e, em muitos casos, tomando a casa das pessoas. É uma realidade que não avisa, ela grita”, afirma o ambientalista.
“A gente espera que esse clamor crie as pontes necessárias para que políticos que não têm tradicionalmente proximidade com a causa ambiental possam ter sensibilidade de entender que não é mais possível deixar esse assunto como uma causa optativa de seus mandatos, mas que medidas concretas precisam ser tomadas sob o custo dessas tragédias se tornarem rotineiras”, adverte Woortmann.
Desmatamento potencial
Mesmo com o Rio Grande do Sul mergulhado em sua maior catástrofe ambiental, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado pautou, nessa quarta-feira (8), um projeto (PL 3334/2023) que prevê que imóveis rurais localizados em áreas de florestas na Amazônia Legal possam reduzir sua cobertura mínima de vegetação de 80% para até 50%.
De acordo com o Ministério do Meio Ambiente, os impactos da eventual redução representam um desmatamento potencial de pelo menos 281.661 km², o equivalente a todo o território do estado do Tocantins. A votação acabou adiada após o relator, senador Márcio Bittar (União-AC), faltar. Bittar defende que o projeto vai beneficiar a população da região. A previsão é de que o texto, que faz parte do chamado “pacote de destruição”, seja analisado na próxima semana.
Na outra ponta, o pacote de projetos defendido como prioritário pelos ambientalistas no Congresso neste momento, em resposta à tragédia no Rio Grande do Sul, é composto por cinco iniciativas consideradas estruturantes e conceituais sobre a legislação de clima. Não há previsão de votação de nenhuma delas, por enquanto.
São elas:
– Projeto de Lei 4.129/ 2021 – PLANOS DE ADAPTAÇÃO À MUDANÇA DO CLIMA
Medida considerada pelos ambientalistas necessária para que os “Planos de Adaptação à Mudança do Clima” federal, estaduais e municipais se traduzam em políticas públicas estaduais e municipais de adaptação climática, de acordo com critérios que integram as políticas de adaptação às estratégias de mitigação e que priorizem as populações, os setores e os territórios mais vulnerabilizados pela crise climática. Tais planos são fundamentais para a gestão de risco de desastres e eventos extremos.
– Projeto de Lei 380/ 2023 – CIDADES RESILIENTES ÀS MUDANÇAS DO CLIMA
A proposta atualiza o “Estatuto das Cidades” em relação à necessidade de promover a capacidade de resiliência climática nas cidades. O termo remete a um conjunto de iniciativas e estratégias que permitem a adaptação, nos sistemas naturais ou criados pelos homens, a um novo ambiente, em resposta à mudança do clima atual ou esperada. A matéria foi aprovada na Câmara dos Deputados e está pronta para receber requerimento de urgência de plenário e sua posterior aprovação no Senado.
– Proposta de Emenda Constitucional 37/ 2021 – PEC DO CLIMA
Definida por cientistas e ambientalistas como a “lei mais urgente do mundo”, devido à gravidade e urgência da crise climática e seu potencial catastrófico de atingir milhões de pessoas. A PEC promove três mudanças na Constituição Federal: inclui o direito à “segurança climática”, a “manutenção da segurança climática, com garantia de ações de mitigação e adaptação às mudanças climáticas” e responsabiliza o poder público por “ações de mitigação às mudanças climáticas, e adaptação aos seus efeitos adversos”. A matéria está na Câmara.
– Projeto de Lei 6.969/ 2013 – LEI DO MAR
Cria a política nacional para a conservação e o uso sustentável do bioma marinho, definindo seus objetivos, princípios, diretrizes e instrumentos. A legislação é considerada fundamental para a conservação dos oceanos e criação do seu regime jurídico de garantia dos instrumentos necessários aos processos ecológicos. Está pronta para a pauta do plenário da Câmara
– Projeto de Lei 2.964/2023 – COMBATE AO ANALFABETISMO CLIMÁTICO
O projeto propõe a alteração da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional para incluir no currículo escolar aulas sobre proteção ambiental e mudanças climáticas. Também inclui a necessidade de adaptação das escolas. Sua aprovação é considerada fundamental, porque cerca de 40 milhões de crianças e adolescentes estão expostos aos efeitos da crise do clima no Brasil e as gerações futuras serão as mais atingidas pelos eventos extremos.
A Frente Parlamentar Ambientalista também declarou apoio à PEC 44/2023, que destina 5% das emendas parlamentares para a defesa civil para uso em catástrofes e emergências naturais.